Tanto o espírito quanto o seu processo evolutivo são temas que, apesar de todo o esforço realizado para o entendimento, permanecem obscuros, sendo que, em muitos pontos nada se sabe e tantos outros são completamente desconhecidos. Contudo, nos cabe prosseguir no estudo visando o esclarecimento e o aprofundamento em questões de tamanha importância.
Kardec, o pioneiro em desbravar temas relacionados com espíritos, dialogando e questionando os próprios seres extracorpóreos, apresenta a seguinte pergunta: “Desde o início de sua formação, goza o espírito da plenitude de suas faculdades?” [1].
Este questionamento é fascinante e interessante porque Kardec põe em evidência a possibilidade de Deus criar algo que não esteja completo ou finalizado.
Para esta pergunta, os trabalhadores desencarnados da Codificação respondem: “Não, pois que para o espírito, como para o homem, também há infância. Em sua origem, a vida do espírito é apenas instintiva. Ele mal tem consciência de si mesmo e de seus atos. A inteligência só pouco a pouco se desenvolve” [1].
Esta resposta, de certa forma surpreendente, confirma a suspeita de Kardec de que Deus não cria espíritos já prontos. Em hipótese alguma isto implica em uma incapacidade de Deus, mas, antes, em uma opção.
Assim, pode-se conceber a Criação sob um prisma completamente diferente do que se pensava e, de certa forma, do que foi apresentado no livro Gênesis do Velho Testamento [2]. Portanto, ao invés de uma obra acabada decorrente de comandos, concebe-se a Criação como um processo em que não necessariamente haverá um final. Tanto o espírito quanto a Criação são processos, sendo que o primeiro é partícipe atuante no segundo por ser detentor de opções – o livre-arbítrio.
O espírito, ao ser formado, em decorrência da sua origem, possui todas as possibilidades. Porém, estas necessitam ser “ativadas” tanto pelo conhecimento quanto da aplicação deste, ou seja, das componentes intelectual e moral.
É interessante notar que o espírito se encontra, na formação, em um estado que “mal tem consciência de si mesmo e de seus atos” [1]. Isto leva a crer que, neste estágio, o espírito é tratado, por assim dizer, tal qual crianças no berçário, necessitando de cuidados dos mais variados, inclusive estímulo aos sentidos (não físicos) para dar ensejo ao reconhecimento do seu entorno e de si mesmo.
Verificamos, então, uma longa jornada, desde o estado em que mal tem consciência de si memo até o nível em que nos encontramos, isto é, em condições de aprendizado através de processos expiatórios devido às faltas cometidas. Assim, espíritos compatíveis com um mundo de expiações e provas não podem se considerar como na infância espiritual, pois já alcançaram um grau de desenvolvimento considerável, e, por isso, capaz de compreender e se adequar através da dor.
A longa caminhada do espírito compatível com a Terra no seu estado atual fica patente nas palavras de Paulo, ao dizer: “Quem é, com efeito, o culpado? É aquele que, por um desvio, por um falso movimento da alma, se afasta do objetivo da criação…” [3] e “Que é o castigo? A consequência natural, derivada desse falso movimento; uma certa soma de dores necessária a desgostá-lo da sua deformidade, pela experimentação do sofrimento…” [3].
A jornada dos espíritos ligados à Terra é longa, repleta de experiências das mais diversas, que o conduziram desde o estágio de quase inconsciência de si e de seus atos, passando pelo, que deve ser, longo período de aprendizado como descobertas, portanto, profícuo e prazeroso, até que, “por um falso movimento da alma” [3], perderam o foco mental da própria existência como parte de uma totalidade muito maior que o indivíduo em si, tornando a finalidade da Criação como algo abstrato e desconhecido, sem significado emocional ou motivacional.
Na condição compatível com um mundo de expiações e provas, o espírito perde a consciência de si mesmo, previamente alcançada com grande esforço, estabelecendo a necessidade de percorrer caminho mais árduo ainda na sua reconquista, sendo um estágio doloroso e sofrido.
O espírito é um viajante e, em sua caminhada, comete acertos e equívocos, o que é natural na busca da maturidade. Contudo, o que não pode ser considerado como natural é o erro sistemático, intencional e egoísta.
Necessitamos conceber a finalidade da Criação, por mais abstrata que esta concepção possa ser, e vislumbrá-la como algo mais abrangente que a individualidade, algo tão grande que contém a verdadeira felicidade.
Notas bibliográficas:
[1] Allan Kardec; O Livro dos Espíritos, questão 189.
[2] 1. Bíblia de Jerusalém; Gênesis.
[3] Allan Kardec; O Livro dos Espíritos, Parte 4, Cap. II.