O Correio Espírita publicou, na edição passada, um conto de Ana Maria Miranda sobre ela e seu pai Hermínio de Miranda. A partir desta edição, publicaremos uma cronologia dos momentos vividos entre ambos, curiosidades possivelmente desconhecidas dos leitores, que conhecerão detalhes da vida do grande pai, esposo, escritor e espírita que foi.
Hermínio C. de Miranda tornou-se espírita em 1956 e escreveu sua primeira obra 1967, com o título Os Procuradores de Deus, um estudo de natureza filosófica acerca do problema da vida e da morte, lançado em março do mesmo ano.
A Redação.
CHRONOS 1: Dezembro de 1956
Vivemos, de fevereiro de 1950 a outubro de 1954, em Nova York. Papai fora escolhido para chefiar o escritório de contabilidade da Companhia Siderúrgica Nacional, o que fez com toda a competência de seus estudos de contabilidade e finanças.
De volta ao Brasil, e após remontar nossa casa em Volta Redonda, retomar suas atividades profissionais na Companhia Siderúrgica Nacional, espiritualmente, papai sentia a necessidade de "algo mais, ainda não totalmente definido", mas que o chamava a uma outra realidade, ou realização. Algo faltava em sua vida ou não estava aparente. Ele se questionava, mas não encontrava as respostas de que precisava.
A inquietação crescia. Assim, ele conta que recorreu a um grande amigo, profundo conhecedor da doutrina espírita, depois de percorrer livros e publicações de outras religiões, e pediu orientação. O amigo “escreveu os nomes de alguns autores e livros num pedaço de papel” e o entregou. Ao ler os livros, papai se surpreendeu. O fato é que sentia ter encontrado o que procurava! Os conceitos não lhe pareciam novos – ele “já os conhecia” ... Ele concordava com os textos – eram tudo que ele pensava...
Ele finalmente encontrara o que estava procurando: “a doutrina espírita”. Ele diz que, “daí por diante, seguiu sozinho”...
Aos 36 anos, confiando em seu discernimento e já com um considerável conhecimento da doutrina, pois passara a ler livros, revistas, publicações, artigos, enfim, tudo que lhe interessava, caía nas mãos ou comprava. Além do que já pesquisara e observara de suas leituras, ocorreu-lhe a necessidade de colocar no papel uma primeira reflexão sob a ótica desse novo universo que se lhe descortinava, o qual intitulou de Espiritismo e Divisionismo.
Assim o fez, assinou como "H.C.M." e colocou o que denominou de ‘artiguete’ no correio, endereçado ao Reformador, revista editada pela FEB, Casa Máter do Espiritismo no Brasil. Diga-se de passagem que ele não tinha a menor esperança de o artigo ser publicado. Mas, no mês seguinte, ao comprar o Reformador, viu, não sem espanto, seu ‘artiguete’ no sumário, na capa da Revista, às páginas 276 e 277!
Assim, indizivelmente surpreso e feliz, ligou para a FEB e pediu para “falar com o diretor da FEB e do Reformador”, Dr. Wantuil de Freitas. A conversa inicial foi de apresentação e agradecimento. Este primeiro telefonema se transformou em uma amizade das mais queridas e gratas ao coração de papai por mais de 25 anos. Os próximos contatos foram, durante algum tempo, apenas telefônicos.
Porém, no primeiro encontro pessoal, papai perguntou ao Dr. Wantuil “como e por que resolvera publicar um artigo de um estranho que nem assinara o texto”. Dr. Wantuil disse que realmente hesitara em fazê-lo. Mas fez uma pequena prece na qual pediu um “lampejo intuitivo” e, assim, resolveu pela publicação. Papai, em documento encontrado após seu falecimento, escreve, em testemunho da mais profunda gratidão ao amigo e ao “lampejo intuitivo” que tivera, que:
Aquele foi MEU momento decisivo: se não tivesse sido dado este espaço que eu inocentemente pleiteara, talvez não tivesse insistido mais para dar continuidade aos escritos meramente literários de ficção ou crônicas. O “positivo lampejo intuitivo” recebido pelo Dr. Wantuil não tivera, creio eu o intuito principal pela publicação do texto e de seu sentido: foi um sinal da Espiritualidade para apresentar o “neófito ainda implume” (como o próprio papai se classificou), ao seu futuro público alvo e à sua futura e inesquecível carreira e contribuição à Doutrina, aquela que ele abraçaria, de corpo e alma, por 57 anos.
Ao Dr. Wantuil de Freitas, portanto, e à espiritualidade, devemos o nascimento literário espírita de Hermínio Corrêa de Miranda, aos 36 anos.
CHRONOS 2: Setembro de 1958
Antes de começar a Chronos no 2, e já que estamos em 1958, preciso fazer uma regressão ao tempo em que moramos em Nova York, como já disse, entre fevereiro de 1950 e outubro de 1954. Não posso, entretanto, precisar aos senhores em que ano aconteceu este fato ‘interessante’ na vida dele; apenas posso falar sobre a repercussão do fato, quatro anos depois!
Convido-os, se o desejarem, a percorrerem este tempo comigo. Com alguma frequência, papai entrava numa livraria, perto do escritório da CSN. Minha irmã Marta conta, em seu artigo “Hermínio, um homem bom”, na Revista Leitura Espírita, comemorativa dos 100 anos do papai, editada pela Editora Lachâtre, no início deste ano, o seguinte:
[...] meu pai, durante a estada em Nova York, começou a se interessar pela literatura não ficcional. Conta que, numa pilha de livros de bolso numa livraria daquela cidade, encontrou o seguinte título: Você vive além da Morte, de Harold M. Sherman.
(Na capa do livro, papai conta que “em letras mais miúdas, uma chamada de atenção do leitor em perspectiva: ‘Edição revista, com um novo capítulo: Reencarnação: fato ou fantasia’? O livro fora editado pela Creative Age Press, 1949). Ele naturalmente comprou o livro, devorou-o e o guardou.
Voltemos ao artigo da minha irmã:
SSobre esta obra (Você vive além da Morte), escreveu seu primeiro ensaio crítico, que foi publicado no Reformador em setembro de 1958. A partir de então, passou a se dedicar mais e mais às obras de cunho espirita...
O extenso artigo que escreveu sobre Você Vive além da Morte, a obra de Harold Sherman, ocupa oito colunas do Reformador, em espaço 1! Nelas, papai analisou o livro de Sherman em seus mínimos detalhes, já demonstrando seu poder de “conversar com o leitor”, e no seu português sempre escorreito. Assim, de 1958 em diante, Dr. Wantuil o convidou para escrever uma coluna mensal que intitularam "Lendo e Comentando", o que papai fez durante 22 anos, até 1980. Porém, com o passar dos anos, e com o acervo de conhecimentos, pesquisas e leituras que adquirira, facilitado pela sua fluência em pelo menos quatro idiomas, papai não ficou restrito a uma coluna. Por vezes, em uma única edição do Reformador, ele escrevia mais dois ou três outros artigos sob pseudônimos diferentes, tais como João, João Marcus, C. Miranda e outros. Os leitores me perguntariam por quê. Sua preocupação era não ferir de forma alguma sua mãe, Helena, católica fervorosa, praticante, se soubesse que seu filho se ‘voltara’ para o Espiritismo. Isso o preocupava.
Papai encerrou sua participação como colunista da FEB em 1980, após 22 anos à frente de Lendo e Comentando.
CHRONOS 3: Maio de 1959
Em maio de 1959, papai foi alegremente surpreendido por outro telefonema de seu amigo, Dr. Wantuil, que acabara de “bater um longo papo com mamãe, como sempre” ... Por vezes, até eu tinha este prazer, ao atender o telefone e ouvir a voz grave e forte do amigo já querido pela família toda.
“Ele me ligou eufórico para dizer que um artigo do Reformador fora publicado no exterior, em inglês”, escreve papai nas suas anotações. “Ele fez algum suspense e acabou dizendo que era um texto meu intitulado ‘Judas Redimido’, no qual eu usei o pseudônimo de H.C.M.” Este artigo foi publicado no Reformador, Ano 77, no 3, pags. 5 e 6. Por intermédio de um grande amigo de papai e meu, soube que papai contou que, ao se tornar escritor espírita, começou a ler tudo que podia. Assim, ao ler uma revista publicada na Inglaterra intitulada Two Worlds, editada por Maurice Barbanell, tornou-se ávido leitor e amigo de Barbanell, com quem passou a se corresponder. O Sr. Barbanell era editor de outra revista chamada Psychic News, de muita projeção e concorrente da Two Worlds. Em 1960, as duas revistas se fundiram e Barbanell se tornou diretor das duas publicações. Papai se tornou ainda maior admirador do Sr. Barbanell, ao sabê-lo médium, cujo guia espiritual era um índio norte-americano chamado Silver Birch. De qualquer forma, papai passou o artigo do Judas para o inglês e o enviou para o Sr. Barbanell, que o publicou imediatamente na Two Worlds. Papai passou a escrever com certa assiduidade para a Two Worlds até, o que temos conhecimento, o falecimento do Sr. Barbanell, em 1981. “Judas Redimido”, entretanto, foi o primeiro artigo escrito em inglês por papai e publicado na Two Worlds.
CHRONOS 4: Começo/meados de 1960
Dada a admiração crescente do papai no Reformador, Dr. Wantuil o convidou para fazer parte do Conselho Superior da FEB, que se reunia habitualmente uma vez por ano para aprovar contas, eleger a nova diretoria e “conversar uns com os outros e nos conhecermos melhor” em suas próprias palavras. Papai fez parte deste Conselho durante 15 anos, tendo se desligado por volta de 1975/1976.
CHRONOS 5: Novembro de 1960
Em novembro de 1960, outra alegria o esperava: seu amigo Ismael Gomes Braga, um grande esperantista, renomado e com muita entrada no mundo todo por conta de seu conhecimento do esperanto, traduziu um texto biográfico de Allan Kardec que papai escrevera e que ele, Ismael, gostou muito. O artigo, em esperanto, foi publicado na revista japonesa Oomoto, em Kameoka, Kioto-hu, Japão, às páginas 142 e 143. Alguns anos depois, os japoneses traduziram e publicaram, em japonês, a obra basilar da doutrina espírita, O Livro dos Espíritos, e aproveitaram a biografia de Allan Kardec escrito pelo papai, em Esperanto, conforme explicado acima, traduziram-na e a incluíram na edição japonesa de O Livro dos Espíritos. Tenho uma cópia do artigo em esperanto, na Revista Oomoto, e outra cópia, desta feita de algumas páginas de O Livro dos Espíritos em japonês, que me foram enviados por minha irmã Marta, que os encontrou entre os documentos do papai. Naturalmente, não poderia identificar onde começava ou terminava a biografia de Kardec escrita por papai e o restante da obra em japonês.
CHRONOS 6: Maio de 1961
De 1954 até 1961, por mais ou menos sete anos, e principalmente depois da publicação inesperada de seu ‘artiguete’ intitulado “Espiritismo e Divisionismo” no Reformador, papai continuava lutando com um antigo “problema de consciência”. Nossos avós paternos e maternos foram todos católicos praticantes e, assim, criaram seus dez filhos em cada família respectivamente. Do lado dele, vovó Helena tinha a esperança de que papai fosse padre. Ele foi coroinha da igreja onde moravam e, com o passar dos anos, chegou a pensar em abraçar a vida eclesiástica, para agradar vovó Helena. Ele era muito quieto e sisudo, a ponto de os colegas de ginásio, mais tarde, o apelidarem de ‘vigário’ ...
Mas a fé, caráter, ética e amor, conceitos passados a cada filho por ambas as famílias aos seus descendentes e, principalmente, pela vovó Helena, não o permitiam mudar tão radicalmente sem que ela estivesse a par, mormente depois de se tornar um escritor. Papai adorava a mãe e desejava, mais que tudo, “que ela entendesse que o Deus dela era o mesmo Deus dele”. Ela era uma mulher quieta, inteligentíssima e culta. Papai, como o filho primogênito e os próximos nove filhos (mesmo o segundo filho, Tércio, que faleceu jovem), já foram para a escola aos cinco anos de idade, sabendo ler, escrever e contar. Imagino a angústia por que ele passou.
Assim, quando totalmente resolvido em suas crenças e estudos, ele decidiu escrever uma “Carta à Mãe Católica”. Vovó Helena ficou doente em meados de 1960 e faleceu em 13 de janeiro de 1961. A “Carta à Mãe Católica” foi publicada no Reformador em maio de 1961, às paginas 101 e 102. Ele se assinou “João”. Vovó não chegou a saber desta carta. Como faz mais de sessenta anos de sua publicação, talvez muitos que me lêem agora não conheçam ou leram o texto. Assim, convido-os a lerem esta linda confissão que está também publicada no livro Candeias na Noite Escura, à página 15. Naturalmente, quando o leitor ler esta Carta, há de entendê-la no contexto de há seis décadas!
Em suas próprias palavras, ele inicia sua “Carta” à vovó Helena assim:
Querida mamãe. Esta carta contêm uma terrível confissão: tornei-me espírita. Chamo-lhe confissão porque expressa minha convicção mais íntima, profunda, meditada e sofrida; chamo- lhe terrível porque sei quanto vai feri-la também, íntima e profundamente.
O texto é tão lindo, quanto forte, quando ele já demonstra a força de suas convicções, sem esmorecimentos. Permitam-me transcrever umas poucas linhas para os leitores:
Aqui estou eu, humildemente, aos pés do Pai, sempre que posso, em cada momento da minha vida, para agradecer-lhe as bênçãos incontáveis que sobre mim tem derramado generosamente. Aqui estou, dentro de minhas limitadas forças, lutando como posso contra minhas imperfeições, que são muitas, e meus erros, que são inumeráveis. Aqui estou a seus pés a implorar-lhe que me ajude, iluminando cada vez mais meu entendimento e meus caminhos, inspirando meus pensamentos e atos nobres, fortalecendo-me na prática da caridade. Aqui estou a lhe pedir coragem e inspiração para que, por minha vez, possa ajudar os filhos que Ele me confiou, orientando-os na senda do bem. Aqui estou para agradecer acima de tudo o ter Ele permitido que voltasse ao mundo por intermédio da senhora, que, colaborando na Sua obra, ajudou a formar meu corpo físico e tanto contribuiu, com a nobreza de seu caráter, para reformar meu espírito nesta peregrinação. E me sinto tranquilo e feliz, tanto quanto pode sê-lo a criatura imperfeita que ainda somos, porque creio, porque sofro e luto, e aprendi a orar. Estou feliz porque a minha fé renasceu fortalecida, imune aos embates da razão, porque a própria razão a ilumina.
Quero, pois, pedir à senhora que não se preocupe comigo. Algum dia, com a graça de Deus, nos encontraremos em outras condições, desembaraçados deste tosco invólucro material e conversaremos sobre estes e outros problemas. Estou certo de que lá encontraremos também muitos e muitos amigos que, levados por injunções várias, foram espíritas, protestantes, judeus, católicos ou budistas.
E assim deve ter acontecido. Com seu falecimento, em 8 de julho de 2013, papai e vovó Helena certamente se encontraram.
Mas vovó não deixou a carta sem resposta! Anos após sua morte, papai recebeu um recado dela através de seu amigo, o grande Divaldo Pereira Franco. Convido os senhores a lerem esta preciosidade de amor, nas cinco páginas do livro Nossos Filhos são Espíritos, da Editora Lachâtre, sob o título de “O pós-escrito que virou capítulo”.
Gostaria entretanto de fechar esta ‘cronologia’ com um trecho da resposta da vovó Helena a papai, psicografada por Divaldo Franco. Eis:
Um coração de mãe é como uma fonte, donde o amor jorra constantemente, num fluxo ininterrupto que se perde pela eternidade afora. Os olhos de mãe, quando já não choram mais suas próprias lágrimas, ainda deixam escorrer, por ele, as lágrimas de seus filhos.
Agradeço-te, meu filho, seres o que és. O teres prosseguido nas convicções de tua fé, apesar do respeito e amor por mim. Hoje, vejo que teria lucrado se, embora bastante avançada na vida física, tivesse escutado a melodia da fé nova que fluía de teu coração. Mas tudo são lições e hoje sigo aprendendo contigo quanto aprendeste comigo. Hoje sou eu que anseio passar de lição depressa para chegar logo ao fim do livro,1 que, na verdade, não existe, porque o Livro da Vida se desdobra nas páginas do infinito.
Não esmoreça, filho. Se muito não pude dar-te, ao menos dei-te o exemplo da tenacidade e perseverança, confiando na vida e acreditando nos meus deveres.
Marche para a frente. Não permita que a adversidade te afaste do caminho de teus deveres para com o Cristo e para com a tua fé. Tu sabes, melhor do que eu, o que ela vale. Prossiga, filho. É tua mãe quem te pede. Teu coração está guardado no meu coração...
Ao ensinar papai a ler e escrever, aos cinco anos de idade, vovó não só ensinava a lição do dia, e “tomava a lição dele à noitinha”, como já passava, como dever de casa, a lição do dia seguinte. Certo dia, papai disse a ela: “Mamãe, poderíamos pular a tomada da lição de hoje?” Ela quis saber por quê. Ele disse: “Porque eu já sei a de amanhã”! ...
Diante deste texto que me emociona cada vez que o leio, e por tantas outras razões, mas principalmente por ver o Amor Divino entre um filho e sua mãe, o que mais poderia eu acrescentar?
Assim, senhores leitores, aqui fico na certeza de que fiz o que pude para contar muito ‘anamariamente’ algumas curiosidades e fatos da vida de papai.
Assim, agora sou eu que "humildemente te abraço papai, com tanta saudade, e parafraseando você, que foi meu modelo de vida: “Peço desculpas por minhas imperfeições, que são muitas, e meus erros, que são inumeráveis, e principalmente peço suas bênçãos para que eu possa um dia chegar diante do Pai e agradecê-Lo por você e mamãe me terem aceito como filha” ...
O Senhor me deu tudo, papai, mas não me deu a capacidade de escrever como você... Mas, fazer o quê? Tenho que me conformar, “já valeu ser a ‘filha’ do Hermínio Corrêa de Miranda”, e ele foi único e inimitável...
Agradecimentos: deixo aqui meus agradecimentos a minha irmã Marta, por ceder documentos que ela amorosamente guardou dos arquivos do papai, aos amigos que me ajudaram com lembranças de conversas com papai quando ele revelava, verbalmente ou por escrito, algumas poucas coisas de sua vida muito reservada e dos leitores que sempre o acompanharam e respeitavam como um “velho escriba”, tão amado...