Estamos vivendo hoje, na ordem planetária, um momento de crise muito forte. A presença irradiadora do coronavírus desestruturou todos os mundos socialmente construídos. O Ser humano precisa de um mundo socialmente ordenado. O que ocorre nos últimos meses em âmbito mundial é uma desestruturação de mundo. O universo simbólico vem balançado como um furacão, levando grupos inteiros à experiência da anomia.
O medo volta a tomar conta da sociedade, desequilibrando todos os mecanismos de engenharia social voltados para manter o mundo significativamente em pé. As estruturas de plausibilidade têm sido abaladas pelo “caos”.
O covid-19 não encerra apenas temores, mas oferece igualmente possibilidades singulares para o nosso tempo. Trata-se também de um “momento extraordinário para o mundo”.
Do ponto de vista de nossa angústia, o coronavírus não poderia ter um nome melhor: ele nos tira do trono de nós mesmos e coloca a coroa de nossas vidas em sua justa dimensão. É a coroa de espinhos que convoca uma experiência escassa em nossa época: a humildade.
Diante desta pequena e destrutiva força da natureza, nosso narcisismo se dobra como um vassalo encurralado. Apesar de dolorosa como um espinho na alma, esta pode ser uma experiência profundamente transformadora.
Descobrir que podemos muito menos do que pensamos, aceitar o imponderável que nos governa e acolher com humildade o que ainda não dominamos pode ser muito benéfico. Talvez seja uma verdadeira terapia para aqueles que precisam descansar a cabeça do peso de sua coroa de espinhos narcísicos.
O coronavírus tem obrigado as pessoas a ficarem reclusas e isoladas. Nem todos têm esse hábito de recolhimento e solidão. É uma realidade que pode, positivamente, suscitar uma “chispa” de vida espiritual, de entrada no mundo interior e retomada de um caminho distinto para a vida. Um tempo propício para começar a “desintoxicar o nosso modo de vida”, para além do fechamento egoísta e da fixação identitária. Temos assim a possibilidade única de buscar uma “vida de baixa definição”, de romper o ritmo frenético de nossas atividades, dessa sede de produtividade e consumo para auscultar o mundo interior. A felicidade não é questão de intensidade, mas de equilíbrio, de ordem, de ritmo e de harmonia.
Os tempos de crise são favoráveis à vida espiritual, pois convocam as pessoas ao ritmo de adentramento. Abre-se a rota do caminho interior, do “ponto virgem”, suscitando energias singulares para enfrentar o ritmo sombrio das dificuldades e recuperar o tecido da alegria. A espiritualidade é inspiração para um horizonte de esperança e de capacidade de autotranscendência. Ela é capaz de provocar em nós mudanças substantivas e apontar caminhos jamais traçados e que são essenciais para a nossa sanidade. A espiritualidade é o momento necessário para o pleno desabrochar de nossa individuação e o espaço da paz no meio dos conflitos e desolações sociais e existenciais.
A espiritualidade convoca-nos ainda para algo essencial e que estamos perdendo nos tempos atuais: a reverência para com a natureza e todas as criaturas. Ela nos ajuda a repensar nossa postura no mundo, a reconduzir o nosso olhar e suscitar uma nova atenção e sensibilidade.
Essa pandemia vai passar, mas não vai ser a última. Muitos morrerão, não há dúvida. E os que ficarão bebem dessa oportunidade de refletir sobre a impermanência e a não substancialidade do ser humano. É uma pandemia que nos ajuda a entender a nossa limitação e a precariedade de qualquer posição que defenda arrogâncias, excepcionalismos e autossuficiências.
Ninguém é e nem poderá passar por essa crise sendo autossuficiente.
(Fonte: site: brasil247.com)