
Vimos na primeira parte desse artigo que os animais em nosso atual Direito Civil são considerados “coisas”, como herança jurídica do Direito Romano e que, por muito tempo, também os escravos, crianças e mulheres eram considerados coisas e subordinados aos interesses de um senhor. Todavia, principalmente como resposta as barbáries do teocentrismo (Deus como fundamento de toda ordem no mundo), a doutrina antropocêntrica (crença de que “o homem é a medida de todas as coisas”) ganhou força e serviu de fundamento para os primeiros contornos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Assim, a forma como se deu a construção do Direito contemporâneo deixou de fora do sistema especial de proteção tanto os animais como o meio ambiente.
A crítica à razão antropocêntrica
Laerte Fernando Levai, Promotor de Justiça de São José dos Campos, em seu artigo “Crueldade Consentida – Crítica à razão antropocêntrica” destaca: “o sistema jurídico ocidental está quase todo ele sedimentado em bases antropocêntricas” e “o fato é que as ciências jurídicas nunca se importaram com o valor intrínseco da natureza ou com a extensão de direitos a seres não-humanos”, deste modo, “a servidão animal foi legitimada pelo Direito”. Após o estabelecimento dessa premissa fática, o Promotor de Justiça ressalta que “o conceito do justo, porém, nem sempre está compreendido na noção de Direito, cujas leis – surgidas ao sabor das circunstâncias históricas e sujeitas aos múltiplos interesses políticos – podem vigorar em descompasso ao princípio da moralidade, que deveria inspirá-las”.
No mesmo artigo, Laerte aponta diversos pensadores ao longo da história que se opuseram ao antropocentrismo, como Pitágoras (565-495 a.C.) que se tornou adepto da alimentação vegetariana e da compassividade, a ponto de adquirir animais cativos nos mercados para soltá-los na mata, os filósofos naturalistas da Grécia Antiga e, ainda, os pensadores da Escola de Mileto. Com esse viés, atualmente, existe um embate de ordem filosófica que pretende implementar profundas modificações em nosso “Direito Ambiental” qual seja: o confronto entre o antropocentrismo, o biocentrismo e/ou ecocentrismo. O mestre e doutor em Direito Público pela UERJ, Fábio Corrêa Souza de Oliveira chama de “Ecologia Profunda” o entendimento de que a natureza e os animais possuem valor intrínseco, não sendo meros instrumentos para os interesses humanos. Oportuno mencionar – e considerando que o Brasil está muito atrás em termos acadêmicos, por exemplo, aos EUA com suas mais de 70 faculdades oferecendo o curso de Direito dos Animais – que a Universidade Estácio de Sá inseriu em seu curso a linha de pesquisa para construção de teses de mestrado e doutorado denominada “Direitos não-humanos? Novos direitos: Direito dos Animais, Ecologia Profunda”.
A autoconsciência e a racionalidade como fundamento
Outra importante base filosófica dos “Direitos Humanos” e que dificulta a concessão aos animais das garantias dadas aos “animais humanos” decorre do fato de que apenas a nossa espécie possui determinados atributos como a “racionalidade” e “autoconsciência”. Uma das principais críticas à premissa de que os humanos devem gozar de Direito à vida, à liberdade, à dignidade etc., em função de serem dotados desses atributos, consiste no argumento dos chamados “casos humanos marginais”. Explica-se: se o nosso Direito hoje garante aos seres humanos diversos benefícios uma vez que são eles dotados de racionalidade e autoconsciência, o que justifica a concessão de Direitos para os bebês, os deficientes mentais, os idosos com Alzheimer ou os doentes terminais? De outro lado, por que não conceder Direitos aos golfinhos ou chimpanzés que trabalham inteligentemente em uma missão militar ou em outro serviço útil a sociedade? Nesse ponto, urge salientar a famosa proclamação da “Declaração de Cambridge” de 2012, redigida pelo neurocientista norte-americano Philip Low, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos Estados Unidos, e assinada por 25 pesquisadores de renome na área, na qual foi assumido publicamente que há evidências científicas suficientes para se considerar que mamíferos, aves e até certos invertebrados, como o polvo, são dotados de consciência, possuem comportamentos intencionais e vivenciam estados afetivos.
A senciência dos animais como fundamento
Em 1776, o teólogo cristão Humphry Primatt autor da obra The Duty of mercy elegeu como parâmetro para consideração moral dos animais a capacidade de sofrer. Diversos outros juristas e filósofos engataram no discurso do que se pode denominar “senciocentrismo” para embasar a tese dos Direitos dos Animais, precipuamente, o filósofo australiano utilitarista Peter Singer, autor do importante livro Libertação Animal, publicado em 1975, afirmando que “se um ser sofre, não pode haver nenhuma justificativa de ordem moral para nos recusarmos a levar esse sofrimento em consideração”. Destaca-se que, em 2014, o Código Civil Francês e, mais recentemente a legislação da Nova Zelândia, foram alterados para retirar os animais da categoria de coisas e classificá-los como “seres vivos sensíveis” ou “seres sencientes”.